Dedico esse texto a nobre senhora, que de dentro do seu carro de
luxo, depois de quase me colocar entre as estatísticas de trânsito,
me fez o gentil cumprimento: “filho da puta!”
O antropólogo Roberto Damatta faz um paralelo interessante entre as
formas de sociabilidade do brasileiro e seu comportamento do
trânsito. Entre as teses que ele defende é que parte do
comportamento que estabelecemos na sociedade reflete, igualmente, na
maneira como nos comportamos no trânsito. No que diz respeito as
relações de classe, caso o condutor esteja num carro de luxo, este
se vê no direito maior do que àquele, que por uma questão de
paixão conserva seu bom e velho fusquinha 77, e a relação pode
ser desde o lampejo de faróis para deixar o carrão passar, mesmo
que exista uma centena de veículos a sua frente até as coisas mais
absurdas e barbaras.
Então, seguindo essa lógica vamos aos motoqueiros (diferente,
filosoficamente, de motociclistas). Esta semana vi dois estendidos,
sem falar do que se entra nos hospitais com ferimentos. Cena que não
gosto de presenciar, quase sempre uma combinação de imperícia do
motoqueiro que se acha no direito de fazer qualquer coisa no
trânsito, esquecendo que a moto apesar de ágil é um veículo como
qualquer outro, e por isso, deve respeitar o CONTRAN, sem falar que
um é veículo com características próprias de condução, tanto
que não falamos motorista e sim, piloto – requer técnicas e
cuidados especiais, inclusive a consciência do risco permanente. Do
outro lado, motoristas estressados, quase sempre pessoas que fizeram
a compra de um sonho, achando que se veriam livre de um problema, mas
que vivem a grande frustração de não poderem realizar o sonho que
as propagandas de veículos anunciam da TV: conduzirem com seu
possante nos grandes centros das metrópoles em velocidade e
segurança, desfrutando de todo conforto e tecnologia disponível –
ou seja, a contemplação do progresso e do desenvolvimento, então –
coitados! Todos os dias ao irem a labuta fica naquela, primeira,
segunda, primeira, segunda, primeira, segunda e, paralelo a isso,
motoqueiros mal educados (alguns até marginais) passam numa
provocação indolente arriscando suas vidas e tirando a tão
curtinha paz dos condutores.
A outra visão é aquele que vemos pelos visores do capacete e das
janelas de nossos veículos parados. Ah, meu Deus! Esses aí, a
grande maioria. Exprimidos e oprimidos, dependentes do transporte
público, quase sempre, pensado por gestores dentro de seus veículos
oficiais, que não tem a menor ideia do que seja trabalhar o ano
inteiro sendo esmagado em coletivos superlotados. No caso das
mulheres, algo ainda mais grave. Homens, canalhas e mal educados, que
nas filhas dos grandes terminais agem como bárbaros desrespeitando a
fila e passando por cima dos mais fracos. Pra piorar, às vezes algum
desgraçado ainda age de forma desrespeitosa com senhoras e jovens. E
os motoristas desses ônibus? Profissionais que podem ser muito
hábeis como condutores, mas que não tem nenhum preparo educacional.
Extremamente mal educados, grosseiros e intolerantes e que se
comportam no seu trabalho de acordo com seu estado de espírito, como
se conduzem um veículo seu.
E se não bastasse todas essas coisas que não deixa nossa cidade
circular, vem a comunicação entre todos esses atores. A começar
pelo desrespeito a todas as regras de trânsito, que só acontece se
tiver um agente público para fiscalizar, e olhe que a depender do
cidadão, este se vê com mais direitos que os demais mortais. Este
semana, inclusive, uma pessoa – no algo do seu esclarecimento e
senso crítico disse:
“Tem que ter mais agentes, policia e poder para controlar a
sociedade”.
Respondi: “precisa que cada pessoa faça a sua parte, eu faço a
minha parte”
“Isso é a consciência de cada um”, respondeu.
“Claro”, confirmei.
Então ele veio com essa:
“Mas este é o problema”
De fato, não está errado, mas o que entendi é que, como depende de
cada um, cada um não fará sua parte porque não se vê obrigado
pela força da lei a cumpri-la. (e, quem o faz está perdendo seu
tempo porque o outro não o fará) Então, aqui volto ao meu
argumento inicial, proposto pelo antropólogo Damatta. Estou falando
de uma sociedade, onde seus cidadãos não tem respeito ao espaço
público e, vivem na defesa do privado, como solução a escassez e
ao fracasso do público. Falo de uma sociedade que busca no
individual a solução de problemas que é coletivo, que vive sob uma
falsa ideia de progresso e desenvolvimento, pautado apenas no
consumo, quando na realidade às condições de vida a cada dia se
deterioram, e quase sempre, da pior forma possível: pela relação
dos seus semelhantes, resultando num Estado naturalista, que quer se
prevalecer pela força, achando-se mais dignos de direitos em função
dos que dizem possuir, esquecendo – obviamente – que o padrão de
sociedade que nossa nobre classe média (e todos àqueles que sonham
fazer parte dela) desejada é construída com base em valores e
formação cidadã, algo bem distantes de nossa barbárie. Como isso
não pode depender de cada um, mas de um poder de coação, chegamos
ao ponto de pensarmos que isso é a grande utopia, ou como disse o
nobre que referenciei linhas acima: “consciência de cada um”,
que pelo seu tom de descrença da bem a dimensão do fracasso social
que vivemos e, de como isto está de forma bem viva em nosso trânsito
de cada dia.
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