sábado, 22 de fevereiro de 2014

Trânsito nosso de cada dia

Dedico esse texto a nobre senhora, que de dentro do seu carro de luxo, depois de quase me colocar entre as estatísticas de trânsito, me fez o gentil cumprimento: “filho da puta!”

O antropólogo Roberto Damatta faz um paralelo interessante entre as formas de sociabilidade do brasileiro e seu comportamento do trânsito. Entre as teses que ele defende é que parte do comportamento que estabelecemos na sociedade reflete, igualmente, na maneira como nos comportamos no trânsito. No que diz respeito as relações de classe, caso o condutor esteja num carro de luxo, este se vê no direito maior do que àquele, que por uma questão de paixão conserva seu bom e velho fusquinha 77, e a relação pode ser desde o lampejo de faróis para deixar o carrão passar, mesmo que exista uma centena de veículos a sua frente até as coisas mais absurdas e barbaras.
Então, seguindo essa lógica vamos aos motoqueiros (diferente, filosoficamente, de motociclistas). Esta semana vi dois estendidos, sem falar do que se entra nos hospitais com ferimentos. Cena que não gosto de presenciar, quase sempre uma combinação de imperícia do motoqueiro que se acha no direito de fazer qualquer coisa no trânsito, esquecendo que a moto apesar de ágil é um veículo como qualquer outro, e por isso, deve respeitar o CONTRAN, sem falar que um é veículo com características próprias de condução, tanto que não falamos motorista e sim, piloto – requer técnicas e cuidados especiais, inclusive a consciência do risco permanente. Do outro lado, motoristas estressados, quase sempre pessoas que fizeram a compra de um sonho, achando que se veriam livre de um problema, mas que vivem a grande frustração de não poderem realizar o sonho que as propagandas de veículos anunciam da TV: conduzirem com seu possante nos grandes centros das metrópoles em velocidade e segurança, desfrutando de todo conforto e tecnologia disponível – ou seja, a contemplação do progresso e do desenvolvimento, então – coitados! Todos os dias ao irem a labuta fica naquela, primeira, segunda, primeira, segunda, primeira, segunda e, paralelo a isso, motoqueiros mal educados (alguns até marginais) passam numa provocação indolente arriscando suas vidas e tirando a tão curtinha paz dos condutores.
A outra visão é aquele que vemos pelos visores do capacete e das janelas de nossos veículos parados. Ah, meu Deus! Esses aí, a grande maioria. Exprimidos e oprimidos, dependentes do transporte público, quase sempre, pensado por gestores dentro de seus veículos oficiais, que não tem a menor ideia do que seja trabalhar o ano inteiro sendo esmagado em coletivos superlotados. No caso das mulheres, algo ainda mais grave. Homens, canalhas e mal educados, que nas filhas dos grandes terminais agem como bárbaros desrespeitando a fila e passando por cima dos mais fracos. Pra piorar, às vezes algum desgraçado ainda age de forma desrespeitosa com senhoras e jovens. E os motoristas desses ônibus? Profissionais que podem ser muito hábeis como condutores, mas que não tem nenhum preparo educacional. Extremamente mal educados, grosseiros e intolerantes e que se comportam no seu trabalho de acordo com seu estado de espírito, como se conduzem um veículo seu.
E se não bastasse todas essas coisas que não deixa nossa cidade circular, vem a comunicação entre todos esses atores. A começar pelo desrespeito a todas as regras de trânsito, que só acontece se tiver um agente público para fiscalizar, e olhe que a depender do cidadão, este se vê com mais direitos que os demais mortais. Este semana, inclusive, uma pessoa – no algo do seu esclarecimento e senso crítico disse:
“Tem que ter mais agentes, policia e poder para controlar a sociedade”.
Respondi: “precisa que cada pessoa faça a sua parte, eu faço a minha parte”
“Isso é a consciência de cada um”, respondeu.
“Claro”, confirmei.
Então ele veio com essa:
“Mas este é o problema”

De fato, não está errado, mas o que entendi é que, como depende de cada um, cada um não fará sua parte porque não se vê obrigado pela força da lei a cumpri-la. (e, quem o faz está perdendo seu tempo porque o outro não o fará) Então, aqui volto ao meu argumento inicial, proposto pelo antropólogo Damatta. Estou falando de uma sociedade, onde seus cidadãos não tem respeito ao espaço público e, vivem na defesa do privado, como solução a escassez e ao fracasso do público. Falo de uma sociedade que busca no individual a solução de problemas que é coletivo, que vive sob uma falsa ideia de progresso e desenvolvimento, pautado apenas no consumo, quando na realidade às condições de vida a cada dia se deterioram, e quase sempre, da pior forma possível: pela relação dos seus semelhantes, resultando num Estado naturalista, que quer se prevalecer pela força, achando-se mais dignos de direitos em função dos que dizem possuir, esquecendo – obviamente – que o padrão de sociedade que nossa nobre classe média (e todos àqueles que sonham fazer parte dela) desejada é construída com base em valores e formação cidadã, algo bem distantes de nossa barbárie. Como isso não pode depender de cada um, mas de um poder de coação, chegamos ao ponto de pensarmos que isso é a grande utopia, ou como disse o nobre que referenciei linhas acima: “consciência de cada um”, que pelo seu tom de descrença da bem a dimensão do fracasso social que vivemos e, de como isto está de forma bem viva em nosso trânsito de cada dia.  

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