Em meio a
perspectivas diferenciadas sobre qual o melhor estado de coisas e/ou
qual a formula mágica para o sucesso, ainda martelava um incomodo
sofrido. Como um desgraçado sem dinheiro, sem parentes e sem amigos,
consegue no ápice de sua incapacidade deixar a vida de um outro ser
miserável pior que a sua? Obviamente, numa maldita segunda-feira,
depois de dias numa crise terrível de abstinência. Nenhum dos seus
pequenos vícios satisfeitos. Nada do maldito álcool, nada de
palavras fúteis e que não fazem o menor sentido sob o papel –
isto pode ser um vício perigoso à alma. Pobre alma, vazia de
sentido, vazia dessa invenção que chamamos de amor mas, não porra
nenhuma de amor é de sentidos à existência. Claro que a única
coisa que lhe alimentou foram os ruídos vindo de todos os lugares. O
jogo de futebol poderia ter lhe matado de um infarto. Não deixa de
ser um vício satisfeito que no seu ápice lhe tiraria um último
fôlego. Então, imagina todas àquelas pessoas olhando pro chão e,
depois orgulhosamente, vendo a bandeira sob seu caixão. Sábado e
domingo – não era segunda. Como toda segunda as coisas tendem a
ser mais movimentadas, apesar de todos saírem com um certo mal humor
de casa. Este felizmente não é o meu caso. Sou programado a não
aceitar esse dia. Difere de não gostar, porque em algum momento você
vai dar uma risada, vai encontrar alguém querido ou alguma coisa boa
vai acontecer na sua vida. Na minha programação, NÃO.
Programado a
odiá-lo, nada melhor que fazer apenas o que está dentro da
programação. Poucas palavras, menos ainda opinião sobre qualquer
coisa. Então, você acorda e não reclama de sua gastrite. Um dor
lhe perfura o estomago, mas como você está programado, insiste em
tomar o café forte. Puro e sem açúcar desce mais forte que dor e,
lhe traz a consciência que precisa sair de casa. Cuido para que
minhas feições sejam as mais normais possíveis. Bom dia! Bom dia!
Bom dia! E assim vou descendo as escadas e, vendo nossa nobre classe
média em sua rotina, igualmente, felizes. Essa afirmação é
verdadeira. Eles tem o que querem. Conseguem manter a boa aparência,
logo cumprem com seu objetivo. No meu caso pode ser diferente. Faço
apenas o que se deve fazer, logo me respondem no mesmo tom de voz que
lhes imponho. Serio e formal, como alguém que pretende ser apenas
educado. No entanto, sem alma.
No trânsito, o de
sempre: o que nos coloca como os melhores na América Latina. Àquilo
que nos dizem que somos a 'bola de vez', enfim, que fomos salvos pelo
progresso. Carros, carros, carros, andando lentamente, com seus
vidros fechados. Sob a vizeira dar pra observar muita coisa. A
primeira é a grande quantidade pessoas enlatadas em ônibus.
Exprimidas, estupradas no seu direito. Não tenham dúvida,
certamente alguém cínico o suficiente vai aparecer para dizer que
está fazendo máximo pela melhoria de nosso belo transporte público.
Escuta-se isso nos rádios dos carros que seguem lentamente rumo a
uma existência que parece passar rápido para uns e, pra outros –
principalmente àqueles que não conseguem seguir lentamente –
demoram uma eternidade. Dentro dos sus carros, vistos como
propriedade vinculada a uma existência muito própria de uma
dinâmica de vida e, escutam e acreditam e, logo depois escutam outra
grande bobagem e, assim seguem lentamente. Mas seguem não é porque
querem. Isso é obvio! Alguns são mais apressados e surgem de vias
numa posição imponente colocando seus faróis altos gritando
passagem. Tem todos direito de fazerem isso. Pagaram por isso.
Pagaram pela boa aparência, pela decência de serem incluídos nesta
velocidade da segunda-feira que vai confundindo-se com movimento de
operários em latas de sardinhas que num passado poderia muito bem
ter o nome de tumbeiros, que navegam pela força dos próprios
ombros. Agora, o fato de alguns surgirem do lado e pedirem licença
pra passar não tem idade. Uma senhora bem distinta pediu licença à
sua maneira. Claro que diante da possibilidade que ela tinha de
quebras minha perna em várias partes não a chamei de puta. Chamais
faria isso! Apenas parei bruscamente. Estendi o braço dando o sinal:
“passe madame” e, a madame respondeu com uma singela bozina e
passou. Passou e ficou parada. Lentamente e, aos poucos mais
lentamente e estressante. Segui, também, devagar entre motoqueiros e
motociclistas – hoje visto como uma coisa só, tudo bem não vou
discutir isso, não tenho as cilindradas necessárias para tal
discussão. Devagar por opção e, vários outros me xingando pela
opção. E pensar que vivemos num país dito democrático de pessoas
cordiais, principalmente, aquele humilde e explorado que encontra
razão pra viver e se alegrar.
Felizmente, não
demorei pra chegar no meu primeiro compromisso. Sentia-me bem. Tenho
uma leve sensação do prazer de não pensar em nada, principalmente,
dos meus vícios, das coisas que nunca terei, daquilo que nunca serei
e, principalmente, das mentiras que sou obrigado a conviver por ser
isto ensinado no seio da representação do que chamamos tão
carinhosamente de família. Talvez o que eu chame de mentira sejam as
normas institucionais (com todas as suas variantes possíveis) do
qual o mais rebelde ao mais conservador estão a elas submetidos. Por
que a um simples mortal seria diferente? Então, chegar ao
compromisso e, esperar até o fim do dia para ir ao outro compromisso
é fácil. De alguma forma estou isolado do mundo e, as preocupações
não são preocupações, apenas desafios – bons desafios!
Chegado o pô do
sol, hora de ir para o segundo compromisso. Nesse horário as coisas
são bem mais difíceis. Sentia-me fraco, uma leve dor na nuca –
alguns dizem que isto é pressão alta, um médico, inclusive,
tentando impor sua autoridade, mandou que cuidasse. Fiquei calado,
porque não lhe dou esta autoridade – enfim, estava cansado (como
estou neste momento - cansado dessa merdinha de vida). Limpei a
vizeira. Sentei na moto. Pensei em todo o percurso que faria, um
cálculo do que precisava evitar para chegar. Ao inserir a chave na
ignição, como todas às vezes, assumi os riscos, os medos e a
grande possibilidade de não chegar. É por isso que odeio pilotar
motocicletas. Entre os piores trechos escolho sempre o que considero
o menos ruim. Apesar disso alguns locais são inevitáveis. Dezessete
horas e vinte minutos. Já me aproximava do local de destilo. Debaixo
do capacete apenas a sensação que estava chegando. Durante o
trajetos alguns aborrecimentos, como acontece todos os dias:o mais
grave, seguia por dentro de uma favela quando uma grande picape,
Hilux (acho que é assim que se escreve) seguia pela contramão.
Cheguei a olhar pro sujeito que olhou pra mim com cara “tá olhando
o quê, sou dono desse carrão e passo por cima de você”. Diminui
a velocidade liguei seta e esperei que o nobre rapaz de fato passasse
por cima. Passado o susto segui, sem pressa, sem raiva. Não se pode
ter raiva desse povo.
Faltava muito
pouco pra chegar. Daqui a dois semáforos estaria no segundo e último
compromisso do dia. Como a grande maioria das vias públicas que
circulamos não tem faixas e os buracos estão por toda a parte
tentava, cuidadosamente, olhar quem poderia atravessar do meu lado ao
mesmo tempo que procurava não cair em alguma cratera lunar. Quando
aproximava do penúltimo semáforo, do meu lado esquerdo na calçada
um cachorro tenta atravessar a avenida desesperado. Parecia confuso a
quantidade de pessoas que saiam de um prédio público no momento.
Alguns carros buzinavam. Vinha a quarenta quilômetros.
Repentinamente o cachorro sai em desespero. O carro que vinha mais a
esquerda consegue livrar o cachorro e por muito pouco não derruba um
motociclista que vinha mais ao lado. Como estava mais preocupado me
me posicionar quando fechasse o sinal não tinha percebido de
imediado que o cachorro poderia tomar minha direção e, de fato,
não ia mesmo, o problema foi uma motocicleta que vinha mais rápido
e o cachorro tendo livrar-se praticamente joga-se pra debaixo das
rodas do meu ciclomotor. O fato de não estar correndo e permanecido
numa trajetória permitiu livrar o suficiente para que não passasse
por cima do pobre animal. Não dava pra desviar por completo para a
esquerda porque fatalmente bateria em outro motociclista, do lado
direito um transporte alternativo vinha impaciente. Dos males o
menor. Ao livrar o pneu dianteiro, bater sob os meu pé direito foi
apenas um susto que os dois vira-latas tiveram: o da motocicleta,
porque escapou de um acidente e, o pobre animal – que ficará mais
ainda mais assustado. Os motoristas que vinham atrás ao perceber o
movimento que fiz para não atropelar o outro pararam, até o
transporte alternativo. Não sei porque diabos o cachorro ao invés
de terminar sua passagem, volta ao ponto de onde tinha saído. Pela
velocidade como ele fez isso não estava mancando.
Senti uma dor no
pé e a adrenalina foi a mil. Pensei de imediato que poderia ter sido
com uma pessoa ou até mesmo com um outro veículo e, daí
consequências mais graves. Dava-se conta que não estava preparado
para pilotar. O motorista que estava atrás teve calma. Esperou que
voltasse as marchas ao ponto inicial de partida. Segui alguns metros
e parei. Tremia e, ainda de capacete procurava pela cachorro, que
mais uma vez, tentava atravessar a avenida. Desta vez teve mais
sorte. Não me sinto bem. Tonturas. Retiro o capacete para respirar
melhor. Sentei na calçada olhado para o ciclomotor. Ninguém parou
pra perguntar nada. Por um momento me sinto como o outro animal:
perdido e, assim como ele, teimosamente volto volto a sentar na moto
e a repor o capacete. Penso mais uma vez que é segunda-feira e, das
poucas horas que faltavam para terminar o dia. Giro a ignição e,
lembro de todos os riscos – agora ainda mais presente. Não demorou
muito para que estacionasse o veículo no lugar de sempre. Enfim,
tinha chegado. Aquela cena do cachorro tão encolhido no chão
esperando que absurdamente alguém não tivesse pena de sua
existência ficou na minha mente Confesso que apesar do movimento
arriscado e da baixa velocidade, ainda não sei como foi possível
livrá-lo. Felizmente, consegui. Mesmo assim senti um incômodo.
Foram cinco horas
de trabalho até que chegasse novamente o momento de voltar a
pilotar. Não tinha a menor vontade de voltar aos sessenta. Decisão!
Acima de noventa, irritado pelo erro , numa noite fria e sem
movimento de uma segunda que agora terminava. Não consegui impor o
mesmo ritmo até o fim. Na avenida parei mais uma vez. Desliguei.
Alguma coisa não estava correta. Liguei, desta vez mais calmo e
cauteloso. Ao chegar em casa, depois de desfazer do que carregava
senti alívio. Fui até o quarto e vi que meu filho dormia. Deitei no
chão e os meus ossos pareciam se recompor. Tentei ler alguma coisa,
senti dificuldades, mesmo assim, avancei pela madrugada de
terça-feira, que pra mim ainda era segunda, porque não tinha
dormido.
A terça não
tinha sido suficiente. Cheguei a conclusão que àquele cachorro
tinha passado por cima de mim, porque, em algum momento, em algum
maldito momento me coloquei no lugar dele. Numa bela metáfora, bem
pior que a geladeira, pensei no pedigree daquele cão e no meu, de
quantas vezes tenho que me abaixar e esperar que alguém passe por
cima e me esmague, ou ainda, que me livre sob os chutes da bondade e
da sorte. Estava tranquilo por vê aquele cãozinho salvo, talvez uma
das poucas coisas úteis dos últimos cinco dias. Em mais uma manhã,
sentado e ouvindo sob tantas possibilidades e teorias meu corpo doía
imensamente. Não me sentia bem e fiz questão de falar isso a
ninguém. Ainda incomodava a ideia do pedigree. Antes de sair de casa
tinha me visto no espelho e, percebi que não estava com boa
aparência. Chegava o momento de virar a página. Claro! Tinha
guardado algumas lições: a primeira é que aquele cachorro me fez
lembrar de um monte de coisas. A primeira é a vida, por isso, não é
toa que pela manhã estava tão mal; a segunda; “cuidado ao
atravessar de uma ponta a outra da rua!” Você pode ser atropelado
por algum gigante. Alguém acredita que se fosse um cachorro com
'pedigree' ele teria corrido tantos riscos?
Agora um pouco
melhor consigo escrever sob isso. Me pergunto porquê faço uma
idiotice dessas. Não sei! Talvez porque tenha aprendido algo, talvez
porque às vezes sinto a necessidade de sentir a presença de Deus
onde ele não está, talvez porquê, seja como àquele cachorro –
sem nenhuma pedigree que atravessa em meio aos grandes, porquê corra
os riscos de me machucar ou machucar alguém, talvez porquê, seja de
minha natureza de querer dar sentido, onde muitas vezes às coisas
não façam o menor sentido. Escrevo pra você cachorrinho que me
ensinou à está sempre alerta e doido pra atravessar para o outro
lado.
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