terça-feira, 5 de novembro de 2013

No dia que um cão avisa ao outro.


Em meio a perspectivas diferenciadas sobre qual o melhor estado de coisas e/ou qual a formula mágica para o sucesso, ainda martelava um incomodo sofrido. Como um desgraçado sem dinheiro, sem parentes e sem amigos, consegue no ápice de sua incapacidade deixar a vida de um outro ser miserável pior que a sua? Obviamente, numa maldita segunda-feira, depois de dias numa crise terrível de abstinência. Nenhum dos seus pequenos vícios satisfeitos. Nada do maldito álcool, nada de palavras fúteis e que não fazem o menor sentido sob o papel – isto pode ser um vício perigoso à alma. Pobre alma, vazia de sentido, vazia dessa invenção que chamamos de amor mas, não porra nenhuma de amor é de sentidos à existência. Claro que a única coisa que lhe alimentou foram os ruídos vindo de todos os lugares. O jogo de futebol poderia ter lhe matado de um infarto. Não deixa de ser um vício satisfeito que no seu ápice lhe tiraria um último fôlego. Então, imagina todas àquelas pessoas olhando pro chão e, depois orgulhosamente, vendo a bandeira sob seu caixão. Sábado e domingo – não era segunda. Como toda segunda as coisas tendem a ser mais movimentadas, apesar de todos saírem com um certo mal humor de casa. Este felizmente não é o meu caso. Sou programado a não aceitar esse dia. Difere de não gostar, porque em algum momento você vai dar uma risada, vai encontrar alguém querido ou alguma coisa boa vai acontecer na sua vida. Na minha programação, NÃO.
Programado a odiá-lo, nada melhor que fazer apenas o que está dentro da programação. Poucas palavras, menos ainda opinião sobre qualquer coisa. Então, você acorda e não reclama de sua gastrite. Um dor lhe perfura o estomago, mas como você está programado, insiste em tomar o café forte. Puro e sem açúcar desce mais forte que dor e, lhe traz a consciência que precisa sair de casa. Cuido para que minhas feições sejam as mais normais possíveis. Bom dia! Bom dia! Bom dia! E assim vou descendo as escadas e, vendo nossa nobre classe média em sua rotina, igualmente, felizes. Essa afirmação é verdadeira. Eles tem o que querem. Conseguem manter a boa aparência, logo cumprem com seu objetivo. No meu caso pode ser diferente. Faço apenas o que se deve fazer, logo me respondem no mesmo tom de voz que lhes imponho. Serio e formal, como alguém que pretende ser apenas educado. No entanto, sem alma.
No trânsito, o de sempre: o que nos coloca como os melhores na América Latina. Àquilo que nos dizem que somos a 'bola de vez', enfim, que fomos salvos pelo progresso. Carros, carros, carros, andando lentamente, com seus vidros fechados. Sob a vizeira dar pra observar muita coisa. A primeira é a grande quantidade pessoas enlatadas em ônibus. Exprimidas, estupradas no seu direito. Não tenham dúvida, certamente alguém cínico o suficiente vai aparecer para dizer que está fazendo máximo pela melhoria de nosso belo transporte público. Escuta-se isso nos rádios dos carros que seguem lentamente rumo a uma existência que parece passar rápido para uns e, pra outros – principalmente àqueles que não conseguem seguir lentamente – demoram uma eternidade. Dentro dos sus carros, vistos como propriedade vinculada a uma existência muito própria de uma dinâmica de vida e, escutam e acreditam e, logo depois escutam outra grande bobagem e, assim seguem lentamente. Mas seguem não é porque querem. Isso é obvio! Alguns são mais apressados e surgem de vias numa posição imponente colocando seus faróis altos gritando passagem. Tem todos direito de fazerem isso. Pagaram por isso. Pagaram pela boa aparência, pela decência de serem incluídos nesta velocidade da segunda-feira que vai confundindo-se com movimento de operários em latas de sardinhas que num passado poderia muito bem ter o nome de tumbeiros, que navegam pela força dos próprios ombros. Agora, o fato de alguns surgirem do lado e pedirem licença pra passar não tem idade. Uma senhora bem distinta pediu licença à sua maneira. Claro que diante da possibilidade que ela tinha de quebras minha perna em várias partes não a chamei de puta. Chamais faria isso! Apenas parei bruscamente. Estendi o braço dando o sinal: “passe madame” e, a madame respondeu com uma singela bozina e passou. Passou e ficou parada. Lentamente e, aos poucos mais lentamente e estressante. Segui, também, devagar entre motoqueiros e motociclistas – hoje visto como uma coisa só, tudo bem não vou discutir isso, não tenho as cilindradas necessárias para tal discussão. Devagar por opção e, vários outros me xingando pela opção. E pensar que vivemos num país dito democrático de pessoas cordiais, principalmente, aquele humilde e explorado que encontra razão pra viver e se alegrar.
Felizmente, não demorei pra chegar no meu primeiro compromisso. Sentia-me bem. Tenho uma leve sensação do prazer de não pensar em nada, principalmente, dos meus vícios, das coisas que nunca terei, daquilo que nunca serei e, principalmente, das mentiras que sou obrigado a conviver por ser isto ensinado no seio da representação do que chamamos tão carinhosamente de família. Talvez o que eu chame de mentira sejam as normas institucionais (com todas as suas variantes possíveis) do qual o mais rebelde ao mais conservador estão a elas submetidos. Por que a um simples mortal seria diferente? Então, chegar ao compromisso e, esperar até o fim do dia para ir ao outro compromisso é fácil. De alguma forma estou isolado do mundo e, as preocupações não são preocupações, apenas desafios – bons desafios!
Chegado o pô do sol, hora de ir para o segundo compromisso. Nesse horário as coisas são bem mais difíceis. Sentia-me fraco, uma leve dor na nuca – alguns dizem que isto é pressão alta, um médico, inclusive, tentando impor sua autoridade, mandou que cuidasse. Fiquei calado, porque não lhe dou esta autoridade – enfim, estava cansado (como estou neste momento - cansado dessa merdinha de vida). Limpei a vizeira. Sentei na moto. Pensei em todo o percurso que faria, um cálculo do que precisava evitar para chegar. Ao inserir a chave na ignição, como todas às vezes, assumi os riscos, os medos e a grande possibilidade de não chegar. É por isso que odeio pilotar motocicletas. Entre os piores trechos escolho sempre o que considero o menos ruim. Apesar disso alguns locais são inevitáveis. Dezessete horas e vinte minutos. Já me aproximava do local de destilo. Debaixo do capacete apenas a sensação que estava chegando. Durante o trajetos alguns aborrecimentos, como acontece todos os dias:o mais grave, seguia por dentro de uma favela quando uma grande picape, Hilux (acho que é assim que se escreve) seguia pela contramão. Cheguei a olhar pro sujeito que olhou pra mim com cara “tá olhando o quê, sou dono desse carrão e passo por cima de você”. Diminui a velocidade liguei seta e esperei que o nobre rapaz de fato passasse por cima. Passado o susto segui, sem pressa, sem raiva. Não se pode ter raiva desse povo.
Faltava muito pouco pra chegar. Daqui a dois semáforos estaria no segundo e último compromisso do dia. Como a grande maioria das vias públicas que circulamos não tem faixas e os buracos estão por toda a parte tentava, cuidadosamente, olhar quem poderia atravessar do meu lado ao mesmo tempo que procurava não cair em alguma cratera lunar. Quando aproximava do penúltimo semáforo, do meu lado esquerdo na calçada um cachorro tenta atravessar a avenida desesperado. Parecia confuso a quantidade de pessoas que saiam de um prédio público no momento. Alguns carros buzinavam. Vinha a quarenta quilômetros. Repentinamente o cachorro sai em desespero. O carro que vinha mais a esquerda consegue livrar o cachorro e por muito pouco não derruba um motociclista que vinha mais ao lado. Como estava mais preocupado me me posicionar quando fechasse o sinal não tinha percebido de imediado que o cachorro poderia tomar minha direção e, de fato, não ia mesmo, o problema foi uma motocicleta que vinha mais rápido e o cachorro tendo livrar-se praticamente joga-se pra debaixo das rodas do meu ciclomotor. O fato de não estar correndo e permanecido numa trajetória permitiu livrar o suficiente para que não passasse por cima do pobre animal. Não dava pra desviar por completo para a esquerda porque fatalmente bateria em outro motociclista, do lado direito um transporte alternativo vinha impaciente. Dos males o menor. Ao livrar o pneu dianteiro, bater sob os meu pé direito foi apenas um susto que os dois vira-latas tiveram: o da motocicleta, porque escapou de um acidente e, o pobre animal – que ficará mais ainda mais assustado. Os motoristas que vinham atrás ao perceber o movimento que fiz para não atropelar o outro pararam, até o transporte alternativo. Não sei porque diabos o cachorro ao invés de terminar sua passagem, volta ao ponto de onde tinha saído. Pela velocidade como ele fez isso não estava mancando.
Senti uma dor no pé e a adrenalina foi a mil. Pensei de imediato que poderia ter sido com uma pessoa ou até mesmo com um outro veículo e, daí consequências mais graves. Dava-se conta que não estava preparado para pilotar. O motorista que estava atrás teve calma. Esperou que voltasse as marchas ao ponto inicial de partida. Segui alguns metros e parei. Tremia e, ainda de capacete procurava pela cachorro, que mais uma vez, tentava atravessar a avenida. Desta vez teve mais sorte. Não me sinto bem. Tonturas. Retiro o capacete para respirar melhor. Sentei na calçada olhado para o ciclomotor. Ninguém parou pra perguntar nada. Por um momento me sinto como o outro animal: perdido e, assim como ele, teimosamente volto volto a sentar na moto e a repor o capacete. Penso mais uma vez que é segunda-feira e, das poucas horas que faltavam para terminar o dia. Giro a ignição e, lembro de todos os riscos – agora ainda mais presente. Não demorou muito para que estacionasse o veículo no lugar de sempre. Enfim, tinha chegado. Aquela cena do cachorro tão encolhido no chão esperando que absurdamente alguém não tivesse pena de sua existência ficou na minha mente Confesso que apesar do movimento arriscado e da baixa velocidade, ainda não sei como foi possível livrá-lo. Felizmente, consegui. Mesmo assim senti um incômodo.
Foram cinco horas de trabalho até que chegasse novamente o momento de voltar a pilotar. Não tinha a menor vontade de voltar aos sessenta. Decisão! Acima de noventa, irritado pelo erro , numa noite fria e sem movimento de uma segunda que agora terminava. Não consegui impor o mesmo ritmo até o fim. Na avenida parei mais uma vez. Desliguei. Alguma coisa não estava correta. Liguei, desta vez mais calmo e cauteloso. Ao chegar em casa, depois de desfazer do que carregava senti alívio. Fui até o quarto e vi que meu filho dormia. Deitei no chão e os meus ossos pareciam se recompor. Tentei ler alguma coisa, senti dificuldades, mesmo assim, avancei pela madrugada de terça-feira, que pra mim ainda era segunda, porque não tinha dormido.
A terça não tinha sido suficiente. Cheguei a conclusão que àquele cachorro tinha passado por cima de mim, porque, em algum momento, em algum maldito momento me coloquei no lugar dele. Numa bela metáfora, bem pior que a geladeira, pensei no pedigree daquele cão e no meu, de quantas vezes tenho que me abaixar e esperar que alguém passe por cima e me esmague, ou ainda, que me livre sob os chutes da bondade e da sorte. Estava tranquilo por vê aquele cãozinho salvo, talvez uma das poucas coisas úteis dos últimos cinco dias. Em mais uma manhã, sentado e ouvindo sob tantas possibilidades e teorias meu corpo doía imensamente. Não me sentia bem e fiz questão de falar isso a ninguém. Ainda incomodava a ideia do pedigree. Antes de sair de casa tinha me visto no espelho e, percebi que não estava com boa aparência. Chegava o momento de virar a página. Claro! Tinha guardado algumas lições: a primeira é que aquele cachorro me fez lembrar de um monte de coisas. A primeira é a vida, por isso, não é toa que pela manhã estava tão mal; a segunda; “cuidado ao atravessar de uma ponta a outra da rua!” Você pode ser atropelado por algum gigante. Alguém acredita que se fosse um cachorro com 'pedigree' ele teria corrido tantos riscos?

Agora um pouco melhor consigo escrever sob isso. Me pergunto porquê faço uma idiotice dessas. Não sei! Talvez porque tenha aprendido algo, talvez porque às vezes sinto a necessidade de sentir a presença de Deus onde ele não está, talvez porquê, seja como àquele cachorro – sem nenhuma pedigree que atravessa em meio aos grandes, porquê corra os riscos de me machucar ou machucar alguém, talvez porquê, seja de minha natureza de querer dar sentido, onde muitas vezes às coisas não façam o menor sentido. Escrevo pra você cachorrinho que me ensinou à está sempre alerta e doido pra atravessar para o outro lado.

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