quarta-feira, 13 de julho de 2011

“annnnnnnnnn, qual é mesmo a lição do mestre, iiiiiiii, esqueci”


Esperou mais de duas horas por um tal Vasco. Andou de um canto a outro da instituição, em passos lentos sem que ninguém lhe dirigisse uma palavra. Seus colegas de profissão tinham por princípio isolar os bonzinhos. Ali, naquele lugar é necessário que você crie inimigo, como tinha se recusado ganhou inimigo dos dois lados: do lado que não queria inimigos porque acreditava no bom senso e na humanidade (pobre ser ingênuo) e do outro seus sábios colegas. Ainda não tinha engolido todas as humilhações. Mesmo assim aguentou firme, não falou, porque falar naquela situação seria o decreto que todos queriam. Duas horas depois, duas, chegou o tal Vasco:
- Olá, não vou precisar que assine os documentos para mim.
Inacreditável! Quanta coisa poderia ter sido feita se estivesse em casa e, mesmo que não quisesse fazer nada estaria livre da atmosfera que lhe era contrária. Não precisaria ver a cara dos tolos imbecis que se acham os melhores, simplesmente, porque fazem o que todos fazem. Poderia estar em casa assistindo algum programa de auditório, com mulheres gritando, rindo, pessoas pobres de espirito expondo suas medíocres vidas em troca de um exame de DNA. Gostaria de estar do outro lado da mediocridade, assistindo a tudo, pensando o quanto tem engordado nos últimos cinco meses. O tempo passou e não volta. Interessa sair.
Saiu. Tinha dúvida: pegaria o ônibus de sempre? Cheio. Sujo muito sujo e, nessas épocas de chuvas, lama, um cheiro de lama com o de pessoas soadas, uma atmosfera tenebrosa com aquelas luzes brancas, com cobradoras que todos poderiam dizer que tem cem anos de vida. Certa vez tinha pedido uma informação pra uma delas. Foi muito estranha sua resposta: ‘na se kçjfsçdkjf’. Olhou à cara da velha e não tinha como agradecer ... Era ridículo a educação pra alguém que aprendeu a se domesticar diante de sua própria miséria e exploração. Todos os dias àquele ônibus velho, sujo e superlotado de trabalhadores que riem com bobagens, riem de coisas insignificantes, riem de si mesmo andando naquela carroça que chocalha, que deixa surdo e louco.
É interessante pensar nas escolhas. Poderia ir naquele. O outro... caminho totalmente inverso. Não passava pela BR, repleta de buracos, caminhões velozes, putas em acostamentos, ladrões que se escondem. O outro caminho passava pelo bairro nobre da cidade. No inicio seria a praia, a orla. De um lado a praia, enfeitado com seu belo calçadão, movimentadíssima: velhos, mulheres, crianças fazendo atividades físicas. Todo local bem protegido pela polícia. Apartamentos de luxos. Passar de ônibus por um lugar desses dava-lhe uma sensação estranha, de que algumas pessoas vivem com dignidade. Percebe-se ao olhar, pelo vidro do ônibus, que há um sorriso discreto mas, com bastante sentido, bem diferente do que está acostumado a ouvir dentro do seu habitual coletivo. A brisa do mar rejuvenesce, os lares à frente do mar protegem e garantem muita coisa. Os dois caminhos fazem partem de uma mesma realidade.
Optou pelo segundo. Faria o caminho mais prazeroso, apesar de mais demorado. Não sabia se chegaria mais cansado. Esperou mais que o habitual. O ônibus que usa todos os dias já tinha passado, deixou que três passassem. Como já tinha perdido tempo com Vasco ficaria ali, até que subiu no coletivo. Ao contrário do que estava acostumado, tudo limpinho. O branco da luz era mais branco. Valeu a pena esperar. Como é de se esperar, reviu toda àquela paisagem, de pessoas aproveitando o que lhe é possível. Muitos carros, isso deixa o transito mais lento mas nada comparado ao barulho desordenado de pessoas rindo sem o menor sentido.
Desceu na cidade, próximo ao shopping. Poderia tomar cerveja gelada, refrescar a cabeça, tentar livrar-se dos velhos inimigos ou acalmar a mente. Tomou três chopes. Observava as pessoas passarem de um lado pra outro, alguns sem nenhum objetivo, outros com sacolas de compras. O álcool já lhe fazia efeito. Nas sacolas via o nome de sua instituição e abaixo os seguintes dizeres:
“livremo-nos das maçãs podres”
A maçã podre que bebia cerveja, que tinha esperado duas horas por um tal de Vasco que nem sequer se desculpou, a mesma podridão que lhe acompanhava todos os dias naquele coletivo cheio e sem a menor ordem. Era sua tragédia pessoal, uma ferida à sua alma orgulhosa que só o tempo poderia curar. Que tempo? Será que teria esse tempo? E todas as ameaças, que fazer com todas elas? Pediu mais um chope. Outro, depois outro. Já não via o nome, apenas as chamadas intermitentes do celular indicando-lhe que já estava na hora de ir pra casa. Encontrar sua esposa, seu gato, seus livros, sua vida. Antes de pagar a contar ou de pedir ao garçom outro chope, lembrou da lição do seu velho mestre:
“annnnnnnnnn, qual é mesmo a lição do mestre, iiiiiiii, esqueci”
- Garçom, outro chope.
A realidade tem dessas coisas.

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