Trecho:
1º trecho:
7h35 min. Deitado
numa calçada, sujo pelo próprio vômito. Após muito tempo não dá
pra saber o que as pessoas pensavam ao me verem naquele estado.
Alguns olhavam com certo desprezo, talvez imaginassem se tratar de
algum alcoólatra ou viciado em drogas. Cheguei a olhar pro céu, mas
não pedia nada a Deus. Não sabia o que estava acontecendo. Cheguei
a pensar que poderia está morrendo. Ali! Numa calçada a centenas de
quilômetros de minha antiga casa. E, se por acaso, àquele corpo de
um metro e oitenta pesando sessenta e quatro quilos de fato não
aguentasse? Tinha jogado tudo pra fora. Sempre achei aquilo estranho,
porque não era fácil o silêncio, diante de insultos como:
“Vagabundo. Eu trabalhava e estudava”. Olhei pro céu, depois
procurei um lugar mais reservado. Cambaleante, consigo um local
discreto. Sinto uma dor terrível no estômago, imaginei que poderia
ser um punhal perfurando e fazendo movimentos circulares. Foi o
melhor sentimento que poderia ter vindo.
Precisava lutar
contra a mão invisível que me impunha o sentimento de morte.
Deitado, ainda sob delírios tomará a decisão correta. Não me
curvaria ante a dor e a pobreza. Morrer ou voltar de onde vim tem o
mesmo significado. Muitos dizem que é difícil se recompor. A dor
insuportável e o sentimento de estranhamento desapareceu quando,
enfim, dei conta que o chão da rua não é o lugar de ninguém. De
algum modo revivi o insulto que no passado tinha feito ao pobre homem
que dormia na calçada. Nenhum homem jogado no chão merece condenação
maior do qual já vivi. As condições materiais não podem
determinar o que não somos. Consegui levantar. Andei alguns metros,
até uma banca de revista. Antes de entrar retirei o dinheiro da
bolsa. Sabia que naquelas condições dificilmente o dono deixaria
entrar por muito tempo.
- Por favor, o
senhor me dá uma água mineral.
- Um real. Era você
que estava naquela calçada passando mal?
Peguei a garrafa
d’água. Abri. Tomei de um só gole. Do bolso puxei o dinheiro.
- Por favor! Guarde!
- ordenou o senhor que me atendeu.
- Muito obrigado!
Pretendia falar algo
mais que um obrigado. Hoje penso que fui salvo por àquele senhor que
me fez lembrar de um outro homem no passado se encontrava jogado na
calçada, do qual não tive a mesma dignidade de tratá-lo, ao mínimo
de dignidade. Nunca acreditei em castigo, maldições, mas parecia um
modo de retratação àquela injustiça e mais ainda a um sentimento
de indignação que tive quando fui repreendido XXX. Mas tem coisas que acontecem
como privilégio de situações e de pessoas inesperadas. Não
poderia cair novamente. Não foi uma garrafa de água ou seu valor,
mas algo maior chamou atenção.
2º Trecho:
Aos domingos partia
para ficar o dia na rodoviária pensava nessa história. O que me
deixava aborrecido era não ter escolhido o futuro, mas o modo como
tudo ia acontecendo. Minha incapacidade de mudar. Limitado aos
trocadinhos, aos cachorros-quentes e a minha fé, sempre invocada nos
momentos que sentia fome, no qual começava a salivar como um cão,
então, procurava um local discreto. Podia ser um banheiro ou mesmo
na rua em locais que sabia que nenhum colega me veria naquelas
condições. Quando acontecia era comum as pessoas pararem: “Meus
Deus! Você está bem, você está bem?” Escorado num poste ou
sentado em alguma calçada contorcia-me de dor e desespero. Em nenhum
momento senti medo, nunca chorei, e quanto mais intensa mais vontade
tinha de superar. Se pudesse usar minhas mãos, mesmo esquelético,
lutaria. Nada disso era possível. A dor não é algo tangível, nem
a fome – apenas sentimos na intensidade daquilo que vivemos. Sentia
ódio e queria lutar. Desde muito cedo aprenderá que o homem é um
animal político, portanto, não era tomado por uma racionalidade de
fracasso, mas de possibilidade de vida. Mas devo abrir uma exceção.
Naquela segunda-feira, um dia após da festa em família pensei que
não aguentaria. Além de todos os inconvenientes, perceber a perda
de alguns sentidos soou como se fosse mais capaz de sair daquela
situação. Jogado na calçada, sujo, e totalmente desorientado, dava
impressão do fim. Mas o fim não é tangível à consciência,
talvez por isso tenha tanta raiva da segunda.
Um dia após ter
presenciado o fracasso da vida alheia, sentar-se na calçada de algum
lugar desconhecido como morador de rua trouxe lucidez sombria. O
mundo não é o que me diziam, nem pior, nem melhor. Talvez seja um
pouco mais trágica: é o que fazemos para nós mesmos é o quanto
estou convencido das minhas escolhas. Odeio a segunda-feira, mas foi
neste dia que dei conta que poderia fazer algo. Aos poucos minha
cabeça voltava e do meu lado alguns livros, a bolsa suja de terra e
vômito. Consequência de mais uma crise. Às dez, às treze, às
dezessete, às vinte e duas, mas poderia ser em qualquer horário
ficando mais intenso de acordo com a fragilidade do corpo. Nestas
horas que me dobrava segurava o Tau. Precisava tomar um gole d’água,
comer alguma coisa.
Dias estranhos. As
vezes semanas sem falar com ninguém. Entrava e sai da sala sem a
necessidade de falar. Os demais colegas não tinham interesse. Eu
sabia falar. Isso é outra coisa. Eles eram de outra realidade
social, que até hoje desconheço, mas naquele momento que nem casa
eu tinha e vivia de uma salsicha e de um pão, ainda pior. Quem
falaria com um sujeito estranho, o mundo, ainda - digo: ainda! -
estranho. Alguns até tentaram, mas colocava-me contra qualquer gesto
de piedade. Precisava sobreviver. Sobreviver significava viver um dia
de cada vez, superar as dificuldades, que não eram apenas
financeiras ou as humilhações do qual estava submetido. Aos poucos
começara a descobrir que havia um pouco mais que as aparências.
Mesmo que vivesse como um desgraçado seria melhor do que qualquer
condição do local de onde viera. Se me julgava pouco livre para
escolhas, resistir seria a maior liberdade. Ninguém nunca tinha dito
o que de fato era o mundo, o mundo dos homens e mulheres. Tudo que
ouvia era o quanto seria fraco para suportá-lo, das dificuldades, e
quando enfim, me deparo vejo o quanto é simplório todas as
afirmações. Superar os limites do corpo foi ter encontrado um
caminho sobre àqueles que te veem de cima como se fossem mais forte,
o mais privilegiado, o mais sábio. Aprendi o que é resistir
superando os limites do próprio corpo. Quando me dei conta, num
gesto automático tracei os caminhos que me tirariam da condição de
indesejado.
Tinha decidido mudar
sair da casa ...
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