sábado, 26 de abril de 2014

1993, o ano que virei os dedos



Quanto escuto essa música, lembro de 1993. 
Seca no semiárido. Alagoinha seca, torrão. Não tínhamos ainda o poço artesiano e, água era apenas comprada em carro pipa – caso quisesse mais rápido –, esperar que o caminham da prefeitura passasse na rua, neste caso não dava pra quem queria e, a opção mais comum: buscar nos barreiros e juntos nas redondezas da cidade. Naquele época fazia as três coisas, a mais comum era acorda cedinho para buscar água em alguma laje ou junto (daí o nome da cidade lagoinha). Carregar duas latas equilibrando sobre os ombros um cabo que segurava com correntes as duas latas de 18 litros cada – chamamos isso de 'galão', para percorrer cerca de um a dois quilômetros não era fácil pra um magrelo de 63 quilos. Hoje sorrio daquele situação, mas na época doía pra caralho. As latas batiam nas pernas, nesse momento eu fazia um movimento com o corpo esquisito para não derramar nenhuma gota daquele líquido preciso.
Naquele mesmo ano uma associação, que estava construindo a uma sede resolve perfurar um poço, acho que um dos primeiros na cidade. A água não era muito boa, no entanto, um alívio diante da escassez. A cidade não estava tão habitada como hoje, de tal forma que no local da sede e do poço havia ainda poucas casas e, as poucas ainda eram pequenos sítios com criação de vacas e bodes. Apesar das palmas,dos cercados não sabia disso, engraçado foi a maneira que vim descobrir.
Segunda-feira, primeiro dia útil e feira na cidade, mas igualmente, dia de buscar água numa manhã que o sol entrava forte pela janela. Alguns carros com os feirantes começavam a chegar. Gostava mais de apreciar o sol da manhã que entrava pela janela, não diminuía meu habitual mal humor das manhãs da segunda, mas àquela claridade sempre me chamava atenção, no entanto, aquilo era rápido. Meu pai de madrugada já tinha enchido dois tambores de água em viagens como formiga para enchê-los, pra mim apenas duas viagens, se aguentar três, mas raramente conseguia.
Oito horas da manhã, já bastante tarde para um dia de feira - longo não havia filas e, nessa hora que costumava fazer minhas duas viagens para buscar água. O caminho não era tão longo na ida, portando, chegar e bobear água nunca foi o problema, aquela água fria e cristalina até aliviava o calor momentâneo. Duas latas cheias, agora era só encaixar as correntes que suspenderiam as latas, antes fazia o ensaio de como equilibraria as latas. Mas nem pra ensaiar deu tempo. Percebo que uma louca vem me minha direção mais dois bezerros. Nunca fui bom de lhe dar nem com gato, imagina agora três bichos grandes correndo em sua direção, numa segunda-feira, às oito e vinte da manhã. Mole do jeito que sou, soltei as latas e fui pular uma cerca de pedras, puta merda não era uma cerca de pedras, apenas. Fui pular uma cerca de pedras e farpado ao mesmo tempo. Enganchei no arame farpado e como estava num movimento de correr e pular o mais rápido meu corpo ao projetar-se ainda preso e, em cima do muro, faz as pedras desabarem. Isso com a vaca aproximando-se, mas só aproximando, porque tinha desabado junto com as pedras. Na tentativa de livra o rosto dos arames e do mato uso o braço esquerdo para apoiar-se na queda, com o outro tento – sem grandes sucessos soltar-me do arame, mas tudo isso já era inútil. Tinha apenas resolvido um problema, me livrado da vaca. Fiquei deitado por algum tempo. Sentia dor em uma das penas, mas cuidei logo de movimentá-la e, vi está bem, como cai por cima do braço - fiz esse movimento mais lentamente, porque senti que alguma coisa não estava bem, o problema não era a dor, mas ausência dela. Fiquei desesperado, olhando para um lado e outro e não tinha ninguém pra me ajudar. Tinha que pular a cerca de volta. A vaca estava mais distante, bebendo água que tinha deixado na lata, por sorte, tinha saciado a sede e voltado pra seu local. Precisava, em todo caso atravessar o farpado. Acho que passar de volta pro outro lado foi uma das coisas mais horríveis que vivi, porque ainda não sentia o braço, havia um pouco de sangue, mas não muito, não dei importância por não havia de fato sangramento mas um machucado. Com o braço e a perna direita abri caminho arranhando às costas. Me aproximei das latas com água. Lavei as feridas e o braço. Aos pouco conseguir mexer o braço esquerdo, no entanto, os dedos não se mexiam, na verdade vê-los fora do lugar e, da mão esquerda, me deixou num estado de que precisava pedir ajuda o quanto antes. Não havia movimento dos dedos e o sangue que escorria vinha dos ferimentos com as pedras e o arame que tinha ferido o lado interno da mesma mão.
Estava reposto para voltar pra casa e pedir ajuda, no entanto, havia um problema. O que fazer com as duas latas d´água. Além disso tinha ficado num estado deplorável e, não queria ser visto daquele jeito, haveria de ter um pingo de dignidade. Tinha decidido. Daria a volta por trás das ruas para sair num beco que ia dar de frente com minha casa e, mesmo que passasse por pequenas ruas daria tempo de chegar em casa antes que algum boato sem nexo fosse feito a respeito do neto de Brasilino. Essa tinha sido a primeira solução, havia outra: o que fazer com as duas latas cheias de água. Tinha ido até lá pra buscar água e não pra correr com medo de uma vaca, mas tinha corrido com medo e agora esta sem dedos e, voltar sem nada - naquelas circunstâncias seria pra mim uma derrota.
Tinha decidido: “vou levar” Tentei a primeira vez e uma dor insuportável no ombro esquerdo que com que caísse e derrubasse uma das latas. Espirei fundo, coloquei a lata na posição e com o lado direito enchi a lata, reposicionei o galão, fixei as correntes entre as latas e o galão e, sobre ombro direito tirei do chão as duas latas. Lembro que naquele momento tinha pedido a Deus forças para ninguém me ver e, sai devagar olhando pra minha mão, que aos poucos ficava inchada. Nas pequenas ruas que passava as pessoas olhavam pra mim com espanto. A cada metro tentava desperadamente chegar em casa. Já perto, uma senhora que conhecia nossa família, por já ter prestado serviços doméstico me vê diz: “minha nossa senhora, o que aconteceu com você” Não consigo falar muita coisa, o suficiente: “caí” disse mostrando a mão. Ela tira dos meus ombros as latas, chama o marido e pede que leve até minha casa. Ele me deixa em casa e corre pra chamar minha mãe.
Estou sentado no sofá, ainda sujo e assustado. Com dedos quebrados pensando que nunca mais os veria mexer. Na minha frente as duas latas d´água, com água. Tinha cumprido parte de minha obrigação do dia. Quem me viu naquele tinha ficado preocupado. Minha mãe vestiu-se rapidamente e me levou pro hospital de Arcoverde. Depois de umas cinco horas, descobrimos que o raio X estava com problemas. Seguimos para outro hospital, desta vez já com encaminhamento porque um familiar tinha tomado conhecimento do caso e encaminhará para o raio X. Quando passamos no médico, uma notícia menos traumática, porque não havia traumas, só não tinha gesso. Uma semana com os dedos fora do lugar, sem movimento e muita dor, até que, enfim, o gesso. Forma dois meses no gesso e poucas esperanças que conseguiria terminar o ano escolar, mas precisava da aprovação do ano escola porque no próximo carimbava minha entrada na vida religiosa. Todos diziam que não haveria tempo de recuperação para as provas. O diretor - que nunca foi com minha cara, até hoje inclusive - tinha vetado datas ou prova oral. A dois dias das provas finais, peço a meu pai uma serra, quinze dias de me livrar oficialmente.
Ninguém acreditava, eu também não. Uma das minhas tias recomendou analgésicos, na verdade um, tomei três por noite. 1994 tinha sido bem diferente. Isso ficou marcado em mim, seja pelos meus dedos tortos, seja pelo que significou. Não tenho raiva de nada, nem de ninguém, lembro apenas que tinha cumprido com meu objetivo. Àquelas duas latas cheias, até hoje me enche de orgulho e foi uma das coisas mais valiosas que aprendi. Tinha cumprido minha missão.

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