Quanto escuto essa música, lembro de 1993.
Seca no semiárido.
Alagoinha seca, torrão. Não tínhamos ainda o poço artesiano e,
água era apenas comprada em carro pipa – caso quisesse mais rápido
–, esperar que o caminham da prefeitura passasse na rua, neste caso
não dava pra quem queria e, a opção mais comum: buscar nos
barreiros e juntos nas redondezas da cidade. Naquele época fazia as
três coisas, a mais comum era acorda cedinho para buscar água em
alguma laje ou junto (daí o nome da cidade lagoinha). Carregar duas
latas equilibrando sobre os ombros um cabo que segurava com correntes
as duas latas de 18 litros cada – chamamos isso de 'galão', para
percorrer cerca de um a dois quilômetros não era fácil pra um
magrelo de 63 quilos. Hoje sorrio daquele situação, mas na época
doía pra caralho. As latas batiam nas pernas, nesse momento eu fazia
um movimento com o corpo esquisito para não derramar nenhuma gota
daquele líquido preciso.
Naquele mesmo ano uma associação, que estava construindo a uma sede
resolve perfurar um poço, acho que um dos primeiros na cidade. A
água não era muito boa, no entanto, um alívio diante da escassez.
A cidade não estava tão habitada como hoje, de tal forma que no
local da sede e do poço havia ainda poucas casas e, as poucas ainda
eram pequenos sítios com criação de vacas e bodes. Apesar das
palmas,dos cercados não sabia disso, engraçado foi a maneira que
vim descobrir.
Segunda-feira, primeiro dia útil e feira na cidade, mas igualmente,
dia de buscar água numa manhã que o sol entrava forte pela janela.
Alguns carros com os feirantes começavam a chegar. Gostava mais de
apreciar o sol da manhã que entrava pela janela, não diminuía meu
habitual mal humor das manhãs da segunda, mas àquela claridade
sempre me chamava atenção, no entanto, aquilo era rápido. Meu pai
de madrugada já tinha enchido dois tambores de água em viagens como
formiga para enchê-los, pra mim apenas duas viagens, se aguentar
três, mas raramente conseguia.
Oito horas da manhã, já bastante tarde para um dia de feira -
longo não havia filas e, nessa hora que costumava fazer minhas duas
viagens para buscar água. O caminho não era tão longo na ida,
portando, chegar e bobear água nunca foi o problema, aquela água
fria e cristalina até aliviava o calor momentâneo. Duas latas
cheias, agora era só encaixar as correntes que suspenderiam as
latas, antes fazia o ensaio de como equilibraria as latas. Mas nem
pra ensaiar deu tempo. Percebo que uma louca vem me minha direção
mais dois bezerros. Nunca fui bom de lhe dar nem com gato, imagina
agora três bichos grandes correndo em sua direção, numa
segunda-feira, às oito e vinte da manhã. Mole do jeito que sou,
soltei as latas e fui pular uma cerca de pedras, puta merda não era
uma cerca de pedras, apenas. Fui pular uma cerca de pedras e farpado
ao mesmo tempo. Enganchei no arame farpado e como estava num
movimento de correr e pular o mais rápido meu corpo ao projetar-se
ainda preso e, em cima do muro, faz as pedras desabarem. Isso com a
vaca aproximando-se, mas só aproximando, porque tinha desabado junto
com as pedras. Na tentativa de livra o rosto dos arames e do mato uso
o braço esquerdo para apoiar-se na queda, com o outro tento – sem
grandes sucessos soltar-me do arame, mas tudo isso já era inútil.
Tinha apenas resolvido um problema, me livrado da vaca. Fiquei
deitado por algum tempo. Sentia dor em uma das penas, mas cuidei logo
de movimentá-la e, vi está bem, como cai por cima do braço - fiz
esse movimento mais lentamente, porque senti que alguma coisa não
estava bem, o problema não era a dor, mas ausência dela. Fiquei
desesperado, olhando para um lado e outro e não tinha ninguém pra
me ajudar. Tinha que pular a cerca de volta. A vaca estava mais
distante, bebendo água que tinha deixado na lata, por sorte, tinha
saciado a sede e voltado pra seu local. Precisava, em todo caso
atravessar o farpado. Acho que passar de volta pro outro lado foi uma
das coisas mais horríveis que vivi, porque ainda não sentia o
braço, havia um pouco de sangue, mas não muito, não dei
importância por não havia de fato sangramento mas um machucado. Com
o braço e a perna direita abri caminho arranhando às costas. Me
aproximei das latas com água. Lavei as feridas e o braço. Aos pouco
conseguir mexer o braço esquerdo, no entanto, os dedos não se
mexiam, na verdade vê-los fora do lugar e, da mão esquerda, me
deixou num estado de que precisava pedir ajuda o quanto antes. Não
havia movimento dos dedos e o sangue que escorria vinha dos
ferimentos com as pedras e o arame que tinha ferido o lado interno da
mesma mão.
Estava reposto para voltar pra casa e pedir ajuda, no entanto, havia
um problema. O que fazer com as duas latas d´água. Além disso
tinha ficado num estado deplorável e, não queria ser visto daquele
jeito, haveria de ter um pingo de dignidade. Tinha decidido. Daria a
volta por trás das ruas para sair num beco que ia dar de frente com
minha casa e, mesmo que passasse por pequenas ruas daria tempo de
chegar em casa antes que algum boato sem nexo fosse feito a respeito
do neto de Brasilino. Essa tinha sido a primeira solução, havia
outra: o que fazer com as duas latas cheias de água. Tinha ido até
lá pra buscar água e não pra correr com medo de uma vaca, mas
tinha corrido com medo e agora esta sem dedos e, voltar sem nada -
naquelas circunstâncias seria pra mim uma derrota.
Tinha decidido: “vou levar” Tentei a primeira vez e uma dor
insuportável no ombro esquerdo que com que caísse e derrubasse uma
das latas. Espirei fundo, coloquei a lata na posição e com o lado
direito enchi a lata, reposicionei o galão, fixei as correntes entre
as latas e o galão e, sobre ombro direito tirei do chão as duas
latas. Lembro que naquele momento tinha pedido a Deus forças para
ninguém me ver e, sai devagar olhando pra minha mão, que aos poucos
ficava inchada. Nas pequenas ruas que passava as pessoas olhavam pra
mim com espanto. A cada metro tentava desperadamente chegar em casa.
Já perto, uma senhora que conhecia nossa família, por já ter
prestado serviços doméstico me vê diz: “minha nossa senhora, o
que aconteceu com você” Não consigo falar muita coisa, o
suficiente: “caí” disse mostrando a mão. Ela tira dos meus
ombros as latas, chama o marido e pede que leve até minha casa. Ele
me deixa em casa e corre pra chamar minha mãe.
Estou sentado no sofá, ainda sujo e assustado. Com dedos quebrados
pensando que nunca mais os veria mexer. Na minha frente as duas latas
d´água, com água. Tinha cumprido parte de minha obrigação do
dia. Quem me viu naquele tinha ficado preocupado. Minha mãe
vestiu-se rapidamente e me levou pro hospital de Arcoverde. Depois de
umas cinco horas, descobrimos que o raio X estava com problemas.
Seguimos para outro hospital, desta vez já com encaminhamento porque
um familiar tinha tomado conhecimento do caso e encaminhará para o
raio X. Quando passamos no médico, uma notícia menos traumática,
porque não havia traumas, só não tinha gesso. Uma semana com os
dedos fora do lugar, sem movimento e muita dor, até que, enfim, o
gesso. Forma dois meses no gesso e poucas esperanças que conseguiria
terminar o ano escolar, mas precisava da aprovação do ano escola
porque no próximo carimbava minha entrada na vida religiosa. Todos
diziam que não haveria tempo de recuperação para as provas. O
diretor - que nunca foi com minha cara, até hoje inclusive - tinha
vetado datas ou prova oral. A dois dias das provas finais, peço a
meu pai uma serra, quinze dias de me livrar oficialmente.
Ninguém acreditava, eu também não. Uma das minhas tias recomendou
analgésicos, na verdade um, tomei três por noite. 1994 tinha sido
bem diferente. Isso ficou marcado em mim, seja pelos meus dedos
tortos, seja pelo que significou. Não tenho raiva de nada, nem de
ninguém, lembro apenas que tinha cumprido com meu objetivo. Àquelas
duas latas cheias, até hoje me enche de orgulho e foi uma das coisas
mais valiosas que aprendi. Tinha cumprido minha missão.
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