domingo, 8 de dezembro de 2013

A recepcionista, a 'doutora' e a volta pra casa...

 Marcos escutava as batidas como se fossem distantes. Soraya do outro lado, em seu desespero já tinha acordado, chamado atenção da metade dos moradores. Ao levantar, procurou o livro. Faltavam poucas páginas para conclui-lo, pretendia tirar dali alguma conclusão. Fechou o livro, vestiu uma calça e foi atender:
- MARCOS. MARUJO ME AJUDA, ME AJUDA!
Marcos ficou assustado:
- O que foi? Fala devagar.
Dulfélia estava atrás fazia gestos com a mão indicando que Marujo tinha falecido. Pela reação de Soraya o problema seria como avisá-la. Depois disso os dois ficaram a sós. Marcos a trouxe até o sofá, acomodando-a ainda com os restos de bebida que os três tinha consumido a pouco tempo. Ela passou a mão no copo, chorava em silêncio. Da cozinha Marcos aproveitou para fazer uma ligação à Dulfélia. Tocou duas, três, quatro vezes, caixa postal. Retornou com água. Sabia que não resolveria e, antes mesmo de falar alguma coisa para ajudá-la Soraya levanta-se:
- Vou pro hospital. - disse isso e ficou parada na sua frente.
Sem dinheiro algum. Este era o problema naquele momento, poderia ir andando mas, demoraria muito.
- Te acompanho – disse Marcos – Espera me arrumar.
Foi até o quarto. Vestiu outra roupa. Verificou a carteira e os cartões de crédito. O silencio do amigo chegou a incomodar a Soraya. Desceram as escadas sem falar, as pessoas que estavam ao redor pareciam saber da história. As atenções não estava voltados à viúva e sim ao mais jovem morador que de tão pouco tempo com hóspede se dispôs ajudar alguém, algo muito raro em pensões e, mais ainda, na casa de Dona Dulfélia, que sempre cuidava de manter os moradores num estágio permanente de desconfiança uns com os outros. Marcos tinha percebido isso, porém, fez questão de não entrar nesse clima de medo imposto pela dona do negócio. Já na rua, caminharam cerca de trezentos metros, foram próximo a um banco, onde poderiam ir de táxi até o hospital público da cidade. Indicaram o caminho. Soraya retira um papel e repassa a Marcos:
- Telefone, de onde? - perguntou
- Do filho mais velho – respondeu com olhar distante – liga pra ele diz que o Pai dele está no hospital.
Ao chegarem, o filho de Marujo já esperava. Devia ter uns vinte anos. Alto (bem parecido com o pai), os olhos vermelhos, cabelos assanhados parecia bem assustado. Correu até Soraya, abraçaram-se por um tempo. Apertou, por instantes a mão de Marcos mas, como estava muito emocionado foi inevitável não lhe dar um abraço. Marcos, a principio, estranhou. Não está acostumando a estas demonstrações de sentimento, no entanto, sentiu que não poderia deixar de lhe retribuir. Lembrou da noite que chegou na pensão e da boa recepção de Marujo, disposto a ensinar dos perigos do local que optou por viver. Sentia, ainda, gosto amargo do péssimo uísque que beberam. Tinha dificuldades em lhe dar com perdas, mesmo àquelas alheias. Seguiram até o atendimento:
- Boa noite senhora!
A mulher não tomou conhecimento de sua gentileza. Mascava chiclete e conversava ao telefone. Marcos insistiu:
- Boa noite, senhora. - desta vez olhou por cima do óculos e o ignorou continuando a conversa. Marcos bateu forte no balcão: - BOA NOITE, VAI FALAR COMIGO OU QUER QUE TOME AS PROVIDÊNCIAS?
A recepcionista limitou-se a levantar os braços. Em segundos dois seguranças aproximaram-se de Marcos, um de braços cruzados demonstrando ser mais forte que ele e o outro com arma na mão. Soraya chorando perguntou à um dos seguranças sobre o marido:
- Minha senhora não sabemos responder, aqui só garantimos que nenhum marginal falte com respeito – o guarda falava encarando Marcos, que preferiu ficar calado.
Pra evitar confusão deixou que o filho de Marujo procurasse alguma informação. Do lado do balcão de recepção esperou por quarenta minutos que a recepcionista terminasse a conversa no telefone.
- Diga – perguntou a recepcionista com cara de poucos amigos.
- Recebemos uma ligação informando que meu pai estaria aqui.
- Quem ligou pra você?
- Não sei – respondeu o rapaz que parecia já querer perder a paciência – se soubesse de qualquer coisa não perguntaria a você.
A recepcionista voltou a levantar os braços. Os seguranças aproximaram-se. Marcos observava o movimento de longe, ainda não tinha digerido agressão. Um dos seguranças segurou o braço do rapaz a puxá-lo pra fora do hospital. Marcos correu até o segurança:
- Moço, por favor, só estamos procurando o pai dele. Estamos um pouco nervosos – Enquanto Marcos procurava convencer outro segurança veio por trás e lhe deu uma gravata – agarrando tão forte, quase não conseguindo respirar.
Os dois foram jogados na calçada. Soraya controlando a ansiedade e vendo a confusão conseguiu entrar na área de acesso restrito. Caminhou cerca de vinte metros até uma segunda porta. Ao passar estranhou o forte cheiro de éter do local, o ambiente mais frio pelo, pelo menos uns dez graus, quase a fez desmaiar. Escorou em uma das macas, ao levantar a cabeça encarou um homem que devia ter uns quarenta anos de idade, parte do seu tórax estava envolta de faixas. Pálido, lábios brancos e ressecados, olhar voltado pro teto. Respirava com dificuldades. Do outro lado duas senhoras choravam. Ao vê-las Soraya encontrou forças à procurar Marujo. Todos àqueles corpos esperavam cuidado, porém, estavam jogados como se fosse um depósito de carnes vivas que iam apodrecendo. O importante seria encontrar Marujo levá-lo pra um lugar melhor. Apesar de ter visto cenas parecidas em noticiários de TV, ao vivo a coisa era bem pior. Continuava não sentindo-se bem. Andou alguns metros, pôs às mãos na parede, sentia peso nas pernas.
- Senhora. Senhora, tudo bem? - perguntou a jovem vestida de jaleco branco.
Soraya parecia não ter forças, sequer pra falar. A jovem a fez sentar numa cadeiras cedida pela acompanhante de um dos pacientes internados na ala. Aos poucos foi recuperando-se. A jovem que lhe socorrera já não estava do seu lado, atendia pacientes, verificava prontuários e as mediações a serem dadas. Mas, ao perceber que Soroya estava recuperada pediu que aguardasse sentada. Dez minutos depois a jovem aproximou-se:
- Você está bem? - sorriu
Soraya ficou tranquila com o gesto da jovem:
- Estou. Foi um passamento. Acho que é falta de comida, não comi nem ontem, nem hoje.
- Mas vocês está acompanhando alguém?
- Meu marido entrou aqui hoje mas, não sei onde.
- Qual o nome dele?
Ao perguntar por quem procurava, Soraya levantou ansiosa:
- Antônio Jacó, chamam ele de Marujo.
A moça verificava a lista. A cada página que passava aumentava ansiedade de Soraya. Minutos que pareciam um tempo infinito, dado ao sentimento de medo que se apoderava de Soraya, temia não encontrar mais seu único amigo e companheiro. Na terceira folha seus olhos já lacrimejavam, na quarta chorava. Tinha por pressentimento que já não estava ali.
- Não está aqui, senhora – disse a jovem que parecia muito sensibilizada com a situação de Soraya – Tem certeza que ele veio pra este hospital - Soraya confirmou num gesto – Então, vamos procurá-lo. Não fique assim - completou a enfermeira.
Foram até a portaria, a mesma em que Marcos e o filho de Marujo tinham sido expulsos. A recepcionista que os ignorou estava no seu gesto habitual: segurando o telefone, conversando de cabeça baixa pouco importando-se com o atendimento. Soraya viu Marcos na porta, do lado de fora. Na entrada, o segurança postado, segurando uma arma, preferiu fingir que não o via, para evitar qualquer problema. A enfermeira cruzou os braços sobre o balcão. Ao perceber que se tratava de um jaleco branco a recepcionista desligou o telefone rapidamente.
- Oi Doutora, estava falando com o pessoal da administração – disse tentando justificar-se – A senhora precisa de alguma coisa? - completou.
Marcos, que antes estava sentado na calçada, viu Soraya na recepção. Fez gestos com as mãos mas, não conseguiu ser visto. O segurança vestido de colete e portando armas de grosso calibre para um eventual conflito com marginais tomava o centro da principal entrada. Marcos encarou-o sendo retribuído pelo mesmo gesto. Marcos resolveu passar mas, foi violentamente empurrado. Do outro lado a jovem enfermeira que procura informações de Marujo percebeu o movimento. Foi até a portaria correndo. Ao vê Marcos no chão, com a testa sangrando em consequência da pancada.
- O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? - gritava a Enfermeira que saiu para ajudar Marcos levantar-se – Pelo visto tem muita coisa errada por aqui – falou enquanto segurava Marcos.
- Este malandro está tentando fazer bagunça – disse o segurança demonstrando convicção em sua fala.
- Então é assim que tratam malandros?
- Ele veio me acompanhando, disse Soraya a enfermeira.
A enfermeira puxou-o pra dentro. Pegou seu celular e foi até um canto mais isolado. Parecia falar com alguém da administração. Voltou até o balcão de atendimento e, mais uma vez, a mulher conversar ao telefone. Fez questão de chegar sem que a percebesse. Chegou a ouvir parte da conversa: “via as fotos que você ...” mas antes de concluir percebeu-se sendo observada e desligou bruscamente. Já era tarde. A enfermeira não disse nada. Chamou a Marcos e Soraya para que a acompanhasse na busca. Passaram pela área restrita. Entravam e saiam por porta e corredores que só quem trabalha no hospital saberia percorrer àquele labirinto em tamanha velocidade de passos. Marcos sentia que encontraria o amigo. Foram para um outro pavimento. Este mais agradável. Seguiam por um grande corredor, cercado por flores. Já próximo da porta de acesso ao segundo prédio enfermeiros saiam com marcas e corpos cobertos. Sentiu um frio correr-lhe. A enfermeira o tranquilizou:
- Não vamos para o necrotério.
De fato. Seguiram por um outra ala. Setor de psiquiatria. Quartos fechados por grades, pacientes que presos circulavam nus, alguns em círculos, outros gesticulando com as mãos para o nada. Apesar de conhecer pouco o amigo não acreditava que poderia encontrar Marujo naquele local, não seria o tipo de homem que passaria por àquela situação. As cicatrizes espalhadas pelo corpo indicavam sobrevivência na beira do cais e, por mais que bebesse e se envolvesse em confusões dificilmente cairia num local daqueles. Se tivesse inimigos, também, não era do tipo de resolver suas inimizades usando sistemas. No caís os trabalhadores não usam apenas os braços para transportar mercadorias, disputavam espaços, conquistavam mulheres e definiam até que ponto podiam circular naqueles espaços e o velho Marujo, além de tudo era respeitado. De certa forma Soraya veio a confirmar seus pensamentos:
- Claro que ele não está aqui.
A jovem que os acompanhava, também, sabia disso:
- Estamos indo pra outra emergência
- Outra? Perguntou Marcos surpreso.
Ao chegarem a enfermeira fez questão de buscar infirmação, antes pediu que Marcos, Soraya e o filho de Marujo esperassem. Marcos observava o ambiente com desconfiança. Se antes a primeira emergência tinha dois seguranças armados, no espaço que estavam, dez policiais mais os seguranças do hospital observavam tudo e todos. Poucos minutos depois a enfermeira voltou.
- Aqui, não se vocês sabem, mas é a parte para pessoas que se envolvem em confusões … - Apesar de não ser tão direto como deveria mas entenderam que, infelizmente, o velho do cais poderia estar machucado, algo que foi confirmado – olha – a enfermeira sentou do lado de Soraya – seu marido está bem na enfermaria. Ele perdeu a mão numa briga...
- MEU DEUS ….
- Calma, se não vão coloca-a na rua. Você vai ficar com ele como acompanhante.
Marcos sentiu-se mais aliviado. O filho de Marujo agradeceu a Marcos. Não havia mais nada a fazer do que voltar à pensão. Antes entrou na enfermaria para conversar com o amigo. Marujo estava pálido e sem forças para falar. Preferiu deixar a conversa para outra ocasião. Saiu do hospital cansado e bastante dolorido. Durante toda vida acreditava que o princípios do respeito regiam - poderia ser em maior ou menor grau – as pessoas, mas o que significava está agora morando numa pensão, depois de ser traído pelos sócios e abandonado pela esposa? Enquanto esperava ônibus para voltar tentava pensar numa saída pra sua vida. Sentia que algo poderia acontecer, algo positivo. Havia, ainda um recurso, antes voltaria à Picuiá – seu primeiro lar – onde tudo começou. Chegou em casa no final do dia. Passou direto para seu quarto e caiu na cama. Acordou na manhã seguinte, arrumou a bolsa e viajou.

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