Marcos escutava as batidas como se fossem distantes. Soraya do outro
lado, em seu desespero já tinha acordado, chamado atenção da
metade dos moradores. Ao levantar, procurou o livro. Faltavam poucas
páginas para conclui-lo, pretendia tirar dali alguma conclusão.
Fechou o livro, vestiu uma calça e foi atender:
- MARCOS. MARUJO ME AJUDA, ME AJUDA!
Marcos ficou assustado:
- O que foi? Fala devagar.
Dulfélia estava atrás fazia gestos com a mão indicando que Marujo
tinha falecido. Pela reação de Soraya o problema seria como
avisá-la. Depois disso os dois ficaram a sós. Marcos a trouxe até
o sofá, acomodando-a ainda com os restos de bebida que os três
tinha consumido a pouco tempo. Ela passou a mão no copo, chorava em
silêncio. Da cozinha Marcos aproveitou para fazer uma ligação à
Dulfélia. Tocou duas, três, quatro vezes, caixa postal. Retornou
com água. Sabia que não resolveria e, antes mesmo de falar alguma
coisa para ajudá-la Soraya levanta-se:
- Vou pro hospital. - disse isso e ficou parada na sua frente.
Sem dinheiro algum. Este era o problema naquele momento, poderia ir
andando mas, demoraria muito.
- Te acompanho – disse Marcos – Espera me arrumar.
Foi até o quarto. Vestiu outra roupa. Verificou a carteira e os
cartões de crédito. O silencio do amigo chegou a incomodar a
Soraya. Desceram as escadas sem falar, as pessoas que estavam ao
redor pareciam saber da história. As atenções não estava voltados
à viúva e sim ao mais jovem morador que de tão pouco tempo com
hóspede se dispôs ajudar alguém, algo muito raro em pensões e,
mais ainda, na casa de Dona Dulfélia, que sempre cuidava de manter
os moradores num estágio permanente de desconfiança uns com os
outros. Marcos tinha percebido isso, porém, fez questão de não
entrar nesse clima de medo imposto pela dona do negócio. Já na rua,
caminharam cerca de trezentos metros, foram próximo a um banco, onde
poderiam ir de táxi até o hospital público da cidade. Indicaram o
caminho. Soraya retira um papel e repassa a Marcos:
- Telefone, de onde? - perguntou
- Do filho mais velho – respondeu com olhar distante – liga pra
ele diz que o Pai dele está no hospital.
Ao chegarem, o filho de Marujo já esperava. Devia ter uns vinte
anos. Alto (bem parecido com o pai), os olhos vermelhos, cabelos
assanhados parecia bem assustado. Correu até Soraya, abraçaram-se
por um tempo. Apertou, por instantes a mão de Marcos mas, como
estava muito emocionado foi inevitável não lhe dar um abraço.
Marcos, a principio, estranhou. Não está acostumando a estas
demonstrações de sentimento, no entanto, sentiu que não poderia
deixar de lhe retribuir. Lembrou da noite que chegou na pensão e da
boa recepção de Marujo, disposto a ensinar dos perigos do local que
optou por viver. Sentia, ainda, gosto amargo do péssimo uísque que
beberam. Tinha dificuldades em lhe dar com perdas, mesmo àquelas
alheias. Seguiram até o atendimento:
- Boa noite senhora!
A mulher não tomou conhecimento de sua gentileza. Mascava chiclete e
conversava ao telefone. Marcos insistiu:
- Boa noite, senhora. - desta vez olhou por cima do óculos e o
ignorou continuando a conversa. Marcos bateu forte no balcão: - BOA
NOITE, VAI FALAR COMIGO OU QUER QUE TOME AS PROVIDÊNCIAS?
A recepcionista limitou-se a levantar os braços. Em segundos dois
seguranças aproximaram-se de Marcos, um de braços cruzados
demonstrando ser mais forte que ele e o outro com arma na mão.
Soraya chorando perguntou à um dos seguranças sobre o marido:
- Minha senhora não sabemos responder, aqui só garantimos que
nenhum marginal falte com respeito – o guarda falava encarando
Marcos, que preferiu ficar calado.
Pra evitar confusão deixou que o filho de Marujo procurasse alguma
informação. Do lado do balcão de recepção esperou por quarenta
minutos que a recepcionista terminasse a conversa no telefone.
- Diga – perguntou a recepcionista com cara de poucos amigos.
- Recebemos uma ligação informando que meu pai estaria aqui.
- Quem ligou pra você?
- Não sei – respondeu o rapaz que parecia já querer perder a
paciência – se soubesse de qualquer coisa não perguntaria a você.
A recepcionista voltou a levantar os braços. Os seguranças
aproximaram-se. Marcos observava o movimento de longe, ainda não
tinha digerido agressão. Um dos seguranças segurou o braço do
rapaz a puxá-lo pra fora do hospital. Marcos correu até o
segurança:
- Moço, por favor, só estamos procurando o pai dele. Estamos um
pouco nervosos – Enquanto Marcos procurava convencer outro
segurança veio por trás e lhe deu uma gravata – agarrando tão
forte, quase não conseguindo respirar.
Os dois foram jogados na calçada. Soraya controlando a ansiedade e
vendo a confusão conseguiu entrar na área de acesso restrito.
Caminhou cerca de vinte metros até uma segunda porta. Ao passar
estranhou o forte cheiro de éter do local, o ambiente mais frio
pelo, pelo menos uns dez graus, quase a fez desmaiar. Escorou em uma
das macas, ao levantar a cabeça encarou um homem que devia ter uns
quarenta anos de idade, parte do seu tórax estava envolta de faixas.
Pálido, lábios brancos e ressecados, olhar voltado pro teto.
Respirava com dificuldades. Do outro lado duas senhoras choravam. Ao
vê-las Soraya encontrou forças à procurar Marujo. Todos àqueles
corpos esperavam cuidado, porém, estavam jogados como se fosse um
depósito de carnes vivas que iam apodrecendo. O importante seria
encontrar Marujo levá-lo pra um lugar melhor. Apesar de ter visto
cenas parecidas em noticiários de TV, ao vivo a coisa era bem pior.
Continuava não sentindo-se bem. Andou alguns metros, pôs às mãos
na parede, sentia peso nas pernas.
- Senhora. Senhora, tudo bem? - perguntou a jovem vestida de jaleco
branco.
Soraya parecia não ter forças, sequer pra falar. A jovem a fez
sentar numa cadeiras cedida pela acompanhante de um dos pacientes
internados na ala. Aos poucos foi recuperando-se. A jovem que lhe
socorrera já não estava do seu lado, atendia pacientes, verificava
prontuários e as mediações a serem dadas. Mas, ao perceber que
Soroya estava recuperada pediu que aguardasse sentada. Dez minutos
depois a jovem aproximou-se:
- Você está bem? - sorriu
Soraya ficou tranquila com o gesto da jovem:
- Estou. Foi um passamento. Acho que é falta de comida, não comi
nem ontem, nem hoje.
- Mas vocês está acompanhando alguém?
- Meu marido entrou aqui hoje mas, não sei onde.
- Qual o nome dele?
Ao perguntar por quem procurava, Soraya levantou ansiosa:
- Antônio Jacó, chamam ele de Marujo.
A moça verificava a lista. A cada página que passava aumentava
ansiedade de Soraya. Minutos que pareciam um tempo infinito, dado ao
sentimento de medo que se apoderava de Soraya, temia não encontrar
mais seu único amigo e companheiro. Na terceira folha seus olhos já
lacrimejavam, na quarta chorava. Tinha por pressentimento que já não
estava ali.
- Não está aqui, senhora – disse a jovem que parecia muito
sensibilizada com a situação de Soraya – Tem certeza que ele
veio pra este hospital - Soraya confirmou num gesto – Então,
vamos procurá-lo. Não fique assim - completou a enfermeira.
Foram até a portaria, a mesma em que Marcos e o filho de Marujo
tinham sido expulsos. A recepcionista que os ignorou estava no seu
gesto habitual: segurando o telefone, conversando de cabeça baixa
pouco importando-se com o atendimento. Soraya viu Marcos na porta,
do lado de fora. Na entrada, o segurança postado, segurando uma
arma, preferiu fingir que não o via, para evitar qualquer problema.
A enfermeira cruzou os braços sobre o balcão. Ao perceber que se
tratava de um jaleco branco a recepcionista desligou o telefone
rapidamente.
- Oi Doutora, estava falando com o pessoal da administração –
disse tentando justificar-se – A senhora precisa de alguma coisa? -
completou.
Marcos, que antes estava sentado na calçada, viu Soraya na recepção.
Fez gestos com as mãos mas, não conseguiu ser visto. O segurança
vestido de colete e portando armas de grosso calibre para um eventual
conflito com marginais tomava o centro da principal entrada. Marcos
encarou-o sendo retribuído pelo mesmo gesto. Marcos resolveu passar
mas, foi violentamente empurrado. Do outro lado a jovem enfermeira
que procura informações de Marujo percebeu o movimento. Foi até a
portaria correndo. Ao vê Marcos no chão, com a testa sangrando em
consequência da pancada.
- O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? - gritava a Enfermeira que saiu para
ajudar Marcos levantar-se – Pelo visto tem muita coisa errada por
aqui – falou enquanto segurava Marcos.
- Este malandro está tentando fazer bagunça – disse o segurança
demonstrando convicção em sua fala.
- Então é assim que tratam malandros?
- Ele veio me acompanhando, disse Soraya a enfermeira.
A enfermeira puxou-o pra dentro. Pegou seu celular e foi até um
canto mais isolado. Parecia falar com alguém da administração.
Voltou até o balcão de atendimento e, mais uma vez, a mulher
conversar ao telefone. Fez questão de chegar sem que a percebesse.
Chegou a ouvir parte da conversa: “via as fotos que você ...”
mas antes de concluir percebeu-se sendo observada e desligou
bruscamente. Já era tarde. A enfermeira não disse nada. Chamou a
Marcos e Soraya para que a acompanhasse na busca. Passaram pela área
restrita. Entravam e saiam por porta e corredores que só quem
trabalha no hospital saberia percorrer àquele labirinto em tamanha
velocidade de passos. Marcos sentia que encontraria o amigo. Foram
para um outro pavimento. Este mais agradável. Seguiam por um grande
corredor, cercado por flores. Já próximo da porta de acesso ao
segundo prédio enfermeiros saiam com marcas e corpos cobertos.
Sentiu um frio correr-lhe. A enfermeira o tranquilizou:
- Não vamos para o necrotério.
De fato. Seguiram por um outra ala. Setor de psiquiatria. Quartos
fechados por grades, pacientes que presos circulavam nus, alguns em
círculos, outros gesticulando com as mãos para o nada. Apesar de
conhecer pouco o amigo não acreditava que poderia encontrar Marujo
naquele local, não seria o tipo de homem que passaria por àquela
situação. As cicatrizes espalhadas pelo corpo indicavam
sobrevivência na beira do cais e, por mais que bebesse e se
envolvesse em confusões dificilmente cairia num local daqueles. Se
tivesse inimigos, também, não era do tipo de resolver suas
inimizades usando sistemas. No caís os trabalhadores não usam
apenas os braços para transportar mercadorias, disputavam espaços,
conquistavam mulheres e definiam até que ponto podiam circular
naqueles espaços e o velho Marujo, além de tudo era respeitado. De
certa forma Soraya veio a confirmar seus pensamentos:
- Claro que ele não está aqui.
A jovem que os acompanhava, também, sabia disso:
- Estamos indo pra outra emergência
- Outra? Perguntou Marcos surpreso.
Ao chegarem a enfermeira fez questão de buscar infirmação, antes
pediu que Marcos, Soraya e o filho de Marujo esperassem. Marcos
observava o ambiente com desconfiança. Se antes a primeira
emergência tinha dois seguranças armados, no espaço que estavam,
dez policiais mais os seguranças do hospital observavam tudo e
todos. Poucos minutos depois a enfermeira voltou.
- Aqui, não se vocês sabem, mas é a parte para pessoas que se
envolvem em confusões … - Apesar de não ser tão direto como
deveria mas entenderam que, infelizmente, o velho do cais poderia
estar machucado, algo que foi confirmado – olha – a enfermeira
sentou do lado de Soraya – seu marido está bem na enfermaria. Ele
perdeu a mão numa briga...
- MEU DEUS ….
- Calma, se não vão coloca-a na rua. Você vai ficar com ele como
acompanhante.
Marcos sentiu-se mais aliviado. O filho de Marujo agradeceu a Marcos.
Não havia mais nada a fazer do que voltar à pensão. Antes entrou
na enfermaria para conversar com o amigo. Marujo estava pálido e sem
forças para falar. Preferiu deixar a conversa para outra ocasião.
Saiu do hospital cansado e bastante dolorido. Durante toda vida
acreditava que o princípios do respeito regiam - poderia ser em
maior ou menor grau – as pessoas, mas o que significava está agora
morando numa pensão, depois de ser traído pelos sócios e
abandonado pela esposa? Enquanto esperava ônibus para voltar tentava
pensar numa saída pra sua vida. Sentia que algo poderia acontecer,
algo positivo. Havia, ainda um recurso, antes voltaria à Picuiá –
seu primeiro lar – onde tudo começou. Chegou em casa no final do
dia. Passou direto para seu quarto e caiu na cama. Acordou na manhã
seguinte, arrumou a bolsa e viajou.
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